Carimbos, papel, assinaturas, e muito tempo perdido. Há quase 35 anos foi criado o Ministério da Desburocratização para tentar dar fim ao labirinto de exigências que atrapalha tanto os cidadãos e as empresas. Ele durou menos de sete anos e, infelizmente, não resolveu o problema. O custo dessa burocracia para os brasileiros você vai ver a partir desta segunda-feira (4) em uma série especial de reportagens de Fabio Turci e Franklin Feitosa.
O cidadão procura o serviço público, mas o documento que ele veio buscar ainda não ficou pronto. É que o tempo, aqui, tem um ritmo particular.
“Está para a assinatura da chefia. Mas não faz nem um mês que está para a assinatura da chefia. É que demora mesmo”, explica a servidora.
A assinatura. O protocolo. O carimbo. A gente depende disso tudo.
“Eu vim fazer um ajuste de parcelamento, só que não deu certo. Ficou faltando um carimbo da funcionária. Vou ter que voltar amanhã”, conta a auxiliar de escritório Ivonete Conteli.
Mas a assinatura, o protocolo, o carimbo só existem para servir à principal autoridade da burocracia. Vossa Excelência, o papel.
E como o Brasil dá valor ao papel. Além de usar, a gente guarda muito papel. Contas, guias, contratos, apólices, prontuários. Já imaginou reciclar tudo isso? Nem pense.
Existem leis que dão vida longa à papelada. Alguns documentos, como notas fiscais e recibos, precisam ficar guardados por cinco anos. Outros, como as guias do fundo de garantia, por 30 anos.
Por causa disso, surgiu um belo negócio: empresas que guardam os papéis de outras empresas. E, na maioria das vezes, guardam para nada.
“Somente 10% dos documentos serão acessados para algum tipo informação, necessidade ou ação legal. É guarda pura. Nenhum fiscal vai querer olhar”, aponta Eduardo Gutierrez, presidente da empresa.
Hoje, muitos documentos já são digitalizados. Ficam na memória do computador. Mas a lei é implacável. “O papel precisa ser guardado”, afirma Gutierrez.
Tanta consideração pelo papel vem de longe. “Papel inglês, de peixe, era tudo importado, você vê, olha a grossura dele. Uma qualidade que você não encontra mais. Eu chamo meu tesouro de papel. Esse é meu tesouro”, conta o tabelião Aldo Godinho Filho.
No cartório do Seu Aldo, estão papeis com mais de 200 anos. Por herança de Portugal, desde que o Brasil era colônia, os cartórios atestam a verdade dos documentos. Hoje, quando o papel é colocado em dúvida, é preciso confirmar que a cópia é autêntica, que a assinatura confere. Afinal, a palavra do tabelião, o responsável pelo cartório, vale mais do que a nossa.
“Eu sou um profissional do direito, dotado de fé pública. O que é fé publica: a minha palavra vale erga omnes. Ela é sólida. Ela existe. Só através de prova em contrário, devidamente fundamentada, é que a minha fé pública será abalada”, explica Seu Aldo.
O economista Hélio Beltrão, que foi ministro da desburocratização no governo João Figueiredo, dizia que duvidar, de antemão, do cidadão comum provoca burocracia: "No Brasil, em vez de se colocar o falsário na cadeia, obrigam-se todas as pessoas a provar sistematicamente, com documentos, que não são desonestas".
E tratada como desonesta se sente a pesquisadora Lygia da Veiga Pereira. “O meu empregador, o governo, quem está financiando a minha pesquisa, cria mecanismo de controle, provavelmente para prevenir contrabando, para prevenir a entrada de produtos perigosos no país. Eu entendo, mas ele me trata, pesquisadora, funcionária dele, financiada por ele, como se eu fosse uma potencial contrabandista”, comenta Lygia da Veiga Pereira chefe do Departamento De Células-Tronco Embrionárias da USP.
No laboratório da USP, Lygia chefia pesquisas que podem levar à cura de doenças. Mas o estudo depende de reagentes que o Brasil não fabrica. E as restrições na importação atrasam a chegada do material.
“O processo de importação de produtos para pesquisa, apesar de a gente até não poder pagar impostos nesses produtos, é muito demorado, é muito burocrático. Essa pesquisa parou por dois meses, para esperar a chegada desses reagentes”, conta a pesquisadora.
Para 63% dos brasileiros, segundo a Confederação Nacional da Indústria, a burocracia é importante para evitar o uso indevido do dinheiro público. Mas 80% acham o Brasil um país burocrático ou muito burocrático. E 68% acham que o combate à burocracia deve ser uma prioridade do governo.
Já foi, um dia. O advogado Piquet Carneiro, que foi ministro da desburocratização depois da saída de Hélio Beltrão, lembra que o Brasil era criativo para inventar documentos.
Atestado de vida. De pobreza. De idoneidade moral. “No sistema de garantias para o empréstimo de casa própria, pequena renda, tinha até atestado de noivado. Você pode imaginar? O sujeito para pedir o dinheiro tinha que ou ser casado ou estar para casar. Então, inventaram o atestado de noivado”, aponta José Geraldo Piquet Carneiro, ex-ministro da Desburocratização.
Pelo menos esses ficaram arquivados na história. “As fraudes não são impedidas pelo cumprimento, pelas pessoas comuns, das exigências burocráticas. Porque as fraudes, por natureza, elas dão a volta na burocracia. Não precisamos de tanto documento. Não precisamos de tanto registro. Precisamos de mais confiança no cidadão. A maior parte dos cidadãos é séria”, afirma Carlos Ari Sundfeld, professor de Direito da FGV-SP.
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